sexta-feira, 29 de maio de 2015

A Cidade do Sol – Khaled Hosseini, resenha por Milena Pacheco



"De todas as dificuldades que uma pessoa têm de enfrentar, a mais sofrida é, sem dúvida, o simples ato de esperar." 

Como começar a escrever sobre A Cidade do Sol sem um pacote de lenços ao meu lado? Para quem acompanha este blog, sabe o quanto secretamente (ou não), eu sou fã de grandes personagens femininas, e desta vez não foi diferente. Explico o porquê. 

O livro gira em torno de duas personagens centrais, Mariam e Laila, e através do olhar destas duas mulheres, o leitor é levado a um panorama histórico do Afeganistão desde os anos 70 até o inicio do século XXI. Em suas mais de 360 páginas, divididas em quatro partes dispostas através de cinquenta e um capítulos, suas histórias vão sendo contadas e interligadas no formato mais bonito que a definição de esperança pode ter. 

Mariam e Laila vivem em um país e em um tempo no qual a mulher era total e completamente desprovida de direitos, e onde sua vida era decidida e definida do inicio ao fim pela figura de um homem. Vale aqui ressaltar uma das frases do livro: "Aprenda isso de uma vez por todas, filha: assim como uma bússola precisa apontar para o norte, assim também o dedo acusador de um homem sempre encontra uma mulher a sua frente. Sempre."

A primeira parte do livro conta a história de Mariam, que nasceu em 1959, em Herat, uma das maiores cidades do Afeganistão. Mariam é fruto de um adultério, e portanto, ela era considerada uma harami, resultado de uma relação ilegítima entre um homem de grandes posses, e uma de suas empregadas domésticas. 

Como toda boa história dramática, já sabemos o que houve, certo? A família de sua mãe, ao saber da gravidez, vai embora, deixando-a completamente sozinha. Ela passou então a morar em uma casa de tijolo com barro e palha, a qual foi construída por Jalil, o pai de Mariam. Uma vez por semana Jalil as visita e recebe o amor puro e intenso da garota, e criticas silenciosas de Nana, a mãe de Mariam, que após a saída de Jalil da casa, se transforma em gritos esbravejados, para que assim Mariam entenda que Jalil podia visita-la toda semana repleto de presentes e chamegos, mas no final das contas, ele as abandonou em uma casa isolada de todo e qualquer desfrute de uma sociedade "normal".

 No seu aniversário de 15 anos, Mariam pede ao pai de presente que ele a leve ao cinema juntamente com seus irmãos legítimos. Acontece que no dia combinado, Jalil não aparece. Mariam resolve então ir atrás do pai em Herat, mesmo sabendo que Nana desaprovaria sua decisão. Ao chegar na mansão em que o pai vive, Mariam não é recebida por ninguém, e resolve dormir a noite inteira na calçada, e pela manhã apenas um motorista aparece para leva-la de volta para a sua casa. Ao chegar na velha e boa cabana de barro e palha, Mariam encontra sua mãe morta por livre e espontânea vontade. 

A partir de então, conforme a mãe de Mariam havia previsto, a sua filha está só. Mariam é finalmente recebida na casa de Jalil, e no entanto, quando menos esperava, seu pai a promete para casamento a um homem que reside em Cabul. E mesmo contra sua vontade, Mariam se casa aos 15 anos de idade com Rashid, um homem sádico e sedento por sangue. 

Na segunda parte do livro, conhecemos Laila, que nasceu em 1978, 19 anos após Mariam, época esta em que os soviéticos já haviam invadido o Afeganistão. Seu pai, um professor, e sua mãe, uma mulher de muita força e personalidade, a criaram com a intenção de que ela poderia ser o que quisesse, e fosse detentora das próprias decisões de vida: "Sei que você ainda é pequena, mas quero que ouça bem o que vou lhe dizer e entenda isso desde já, disse seu pai. O casamento pode esperar, a educação, não. Você é uma menina inteligente. É mesmo, de verdade. Vai poder ser o que quiser, Laila, sei disso. E também sei que, quando esta guerra terminar, o Afeganistão vai precisar de você tanto quanto de seus homens, talvez até mais. Poque uma sociedade não tem qualquer chance de sucesso se as suas mulheres não forem instruídas, Laila. Nenhuma chance."

Laila tinha duas amigas, Giti e Hasina, e um grandíssimo amigo, Tariq, o qual estava sempre com ela. Seus irmãos, Noor e Ahmad, que ela mal conhecia, pois há muitos anos foram enviados como combatentes na guerra contra os soviéticos, acabam morrendo, e a mãe de Laila se comporta como se só tivesse esses dois filhos, a deixando completamente de lado. Em abril de 1992, quando Laila já tinha 14 anos, houve a rendição do presidente do Afeganistão, Najibullah, o qual, antes da presidência, havia sido chefe da KHAD, uma espécie de polícia secreta que ajudava os soviéticos. Essa rendição representava a vitória pela qual os irmãos de Laila tinham lutado e morrido, fazendo com que finalmente os afegãos pudessem viver em paz. Acontece que, seis meses depois  desta noticia, o que se via no Afeganistão, principalmente na capital, era uma guerra entre os próprios afegãos, para ver quem iria assumir o comando do país, e quando Rabbani foi eleito presidente, uma nova guerra se instalou no país, fazendo muitos afegãos fugirem principalmente para os USA. 

Enquanto o país vivia em guerra, Laila e Tariq se apaixonam perdidamente, e se entregam um ao outro antes de um casamento oficial. Neste ínterim Tariq a avisa que vai fugir junto com seus pais, e a chama para acompanha-lo, prometendo se casar com ela e viverem na merecida paz em outro país ou até mesmo em outro continente. Mas Laila não consegue deixar seus pais para trás. Um bom tempo depois, em meio a um cenário aterrorizante de bombas, corpos mutilados no meio das ruas, Laila e seus pais resolvem fugir também , e uma bomba cai em sua casa, estilhaçando seu pai e sua mãe em vários pedaços. Quem resgata Laila no meio dos escombros? Mariam, que por coincidência da vida, era sua vizinha em Cabul. Como Laila estava grávida de Tariq, e ninguém havia notado ainda, ela resolve se casar com Rashid aos 14 anos de idade. 

E é a partir daí, que as duas últimas partes do livro vão contar como será a vida dessas duas mulheres marcadas pelo sofrimento de uma vida anulada por decisões que não são as delas próprias. Passeamos pela época da dominação dos talibãs e pelo tão famigerado 11 de setembro, sempre com a história de Mariam e Laila caminhando juntas, possuindo apenas um sentimento em comum em meio ao caos: esperança. O ato de esperar afinal de contas não é possuir esperança de que dias melhores viram?

Vamos falar sobre o tema central deste livro: a famigerada e temida (ou não) esperança.

Você que de vez em quando chora a noite, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia. Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo. Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais vezes para os seus pais. Você que já não tem pais e nem avós, e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum. Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum. Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar. Você que se deu conta de que nunca será astronauta, um campeão olímpico ou um astro do rock. Que acha superficial e cínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajuda-lo a seguir outro caminho. Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar inusitado da alma. Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar. Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos em desenhos nas nuvens e árvores. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo. Você que, na maioria das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice. Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você  que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão a hecatombe nuclear. Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados e envelhecidos. Depois estende-la no varal de um dia inteiro e deixa-la ali secando ao sol. Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo a noite. Você então seja bem vindo ou bem vinda, porque viver doí, e se doí é porque você vive e resiste todos os dias aos dias. E se eu pudesse conversar com Mariam e Laila, eu diria: "Acreditem, para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo."

Sem entregar o final deste magnífico livro, se por um minuto a esperança deixar de existir, nossas decisões serão sempre feitas sem o nosso consentimento, e quero acreditar que todas as decisões tomadas por estas duas grandes mulheres, foram apenas baseadas em dois puros sentimentos tão complexos de serem entendidos: Amor e esperança. 

Que possamos sempre nos permitir projetar borboletas no céu, e através de seus vôos rasantes, ter esperança de que amanhã será melhor que o hoje. 

Boa leitura!

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