domingo, 14 de julho de 2013

Neve, Orhan Pamuk, 2004


'Neve' conta a história do poeta turco Ka. Ele, que se mudou para a Alemanha e 'renegou' sua pátria, volta a Istanbul após vários anos para o enterro da mãe. Ali, ouve falar da situação da cidade de Kars, cidade isolada da fronteira leste da Turquia que vinha atraindo grande atenção da imprensa de médio porte devido à repercussão da proibição do uso de hijab (o véu usado pelas mulheres muçulmanas para tapar o cabelo) nas escolas, suas eleições polarizadas entre as coalizões islâmicas e secularistas mas, principalmente, ao surto de suicídio de meninas adolescentes e aos rumores de que o radical islâmico 'Blue' se esconde dentro da cidade. Além disso, a cidade possui uma ligação com o poeta, que descobre que ali residem um velho casal de amigos da faculdade, atualmente divorciados: ela, uma ex- feminista que passou a administrar o pequeno hotel de propriedade do pai; ele, um ex-militante socialista e ateu e atual candidato às eleições municipais pelo Partido Isâmico. Quando o secretário de educação da cidade é assassinado, grandes especulações começam sobre sua morte e Ka decide ir à Kars atrás de 'respostas', inicialmente com a intenção de realizar uma matéria jornalística, mas com intenções cada vez mais pessoais sendo 'admitidas' pelo poeta ao longo da narrativa.

Uma trama complexa, diversas referências à geografia e história de um lugar específico, abordagem de problemas aparentemente insolúveis e coragem para mexer com assuntos 'desagradáveis': 'Neve' tem todos os elementos que caracterizam um romance de grande valor acadêmico, que 'afastam' o leitor 'comum' e se torna algo exclusivo para o entendimento daqueles com um nível superior em alguma ciência humana. De fato, o romance tem um valor acadêmico indiscutível (valeu a Pamuk o Nobel de literatura em 2006, o único da Turquia até então), mas conseguiu também um sucesso comercial extraordinário, tendo suas vendas na casa dos milhões, principalmente na Europa e na própria Turquia, sendo um exemplo de que um grande cérebro não torna uma obra necessariamente 'exclusiva' e maçante (sim, os carinhas de barba que postam letras de MPB no facebook também acham muitas vezes um saco uma quantidade excessiva de história e digressões).

Pamuk é um dos principais (provavelmente O principal) escritores da Turquia e do mundo atualmente. Nesses tempos aparentemente desinspirados na literatura, o escritor nos presenteia com uma obra completa: retrata com leveza, longe dos estereótipos e preconceitos da mídia ocidental, esse país tão complexo em eterna crise de identidade que tomou para si a missão de provar ao mundo que 'uma sociedade islâmica pode ser civilizada e laica', constrói uma trama profunda e verossímil e relata situações de barbarismo sem perder a grande sensibilidade da escrita. 'Neve' já foi considerado 'um dos livros a ser lidos para compreender o mundo contemporâneo'. E, convenhamos: se há atualmente uma 'cortina de ferro' que separa o 'leste' e o 'oeste', esse lugar é a Turquia, que preserva aspectos fortes tanto de uma sociedade pragmática, individualista e liberal tipicamente europeia quanto a forte religiosidade, coletivismo e conservadorismo orientais.

Enfim, 'Neve' pode ser lido de diversas formas: como um drama, como uma denúncia, como uma poesia ou como tudo isso. De todos os jeitos, será um livro inesquecível.

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